terça-feira, 28 de setembro de 2010

Sonhos Reais - versão estendida (FIC)



Eu sentia sua presença naquele local. Depois de dias de viagem numa caravela, eu pisava nas fofas areias daquele povoado. Era 1763, o marquês de Pombal determinava a transferência da sede do governo geral para o Rio de Janeiro. A cidade estava empolvorosa. Um menino de uns 14 anos de idade, que vendia jornais nas ruas, explicou-me o motivo e acrescentou que a necessidade da mudança era para ter o centro administrativo mais próximo das regiões de mineração, além dos frequentes conflitos com os vizinhos espanhóis nas regiões Centro-Oeste e Sul. Neste momento tentei esconder mais ainda meu sotaque italiano, eles confundiam muito. Eu precisava te achar. As vestimentas da época ajudavam bastante no que dizia respeito a minha idade aparente. Podia perambular sozinho e com um documento grilado facilmente me tornei dono de uma terra de 100 alqueires, uma bela e aprazível mansão colonial e dono de 70 escravos. Não me olhe assim, era natural o comércio de negros e até índios. O importante é que numa tarde calorenta, encontrei você. Inacreditavelmente linda, como sempre.

- Como eu era? – perguntei apressada.

Calma. Como dizia, você estava belíssima. Uma escrava exemplar.

- Escrava? – espantei-me.

Sim. Estava dentro de uma charrete horrenda, imunda, junto com outros oito escravos, a maioria homens.

- E eu estava linda?

Sim, para mim você está linda, principalmente na hora em que encontro, quando sinto sem sombra de dúvidas que é você. O amor da minha vida, ali, na minha frente.

- Como você é bobo.

Mas, como sempre, eu preciso me conter. Esperar a melhor oportunidade. Naquela época, tinha que levar em consideração não só que você nem faria ideia de quem eu era, como também que você, pela lei da ocasião, pertencia a outrem. Fui falar com o seu capataz.

- Essa aí? É uma escrava maluca. O patrão mandou desfazer dela. Não se deixe enganar pela beleza dela, é falsa. Ela é uma bruxa maluca, senhor...

- Damen. – no Brasil, basta um nome para todos te conhecerem.

- Pois é, como ia dizendo, só parei pra me refrescar no bar do Messias ali. Já tô indo pra feira vender esses aí. Claro, que lá não direi essas coisas. Lá são todos dóceis e gentis. Escravos exemplos, sabe comé.

- Sei, sei sim.

Em seguida rumei a tal feira, já havia ido para lá muitas outras vezes para comprar escravos para minha fazenda.

- Como eram essas feiras?

- Você não vai querer saber, acredite em mim.

- Eu quero, Damen.

Lugar sujo, pessoas sujas, não apenas os escravos, mas todos que estavam lá. Em geral os fazendeiros, os que seriam os legítimos donos, nem iam, mandavam capatazes, outros escravos de confiança para a negociação. Quando um ia, rapidamente era notado e diferenciado pelas suas roupas e modos, principalmente pelo tom de voz, monocórdio, firme e grave. Havia jaulas espalhadas para todos os cantos, correntes e marcas de identificação.

- Marcas de identificação?

Todas as mercadorias eram marcadas a brasa, como o gado é hoje. Assim, todos sabiam de quem se tratava, ou melhor, a quem pertencia. Era difícil um escravo que mudasse de muitos donos, mas quando acontecia, a marca era substituída. Eles eram marcados ali mesmo, após a venda ser consumada. Eu não me demorei a comprar você. Quando disseram que iam marca-la, pedi que não, eu mesmo queria fazer depois, na minha fazenda. Todos me olharam com ar de perversidade, alguns no sentido de que eles queriam fazer aquilo, como se eu estivesse lhes tirando um prazer, outros no sentido de que eu iria me divertir sozinho. Após me afastar, pude demonstrar o nojo dentro de mim e meu escravo, Olímpio, estranhou tal expressão em mim.

- Por que? Você não era bom para eles? Diferente daqueles cretinos?

- Ever, eu já disse que não me orgulho de muitas coisas que fiz, nem sempre sou tão complacente, ou do modo como você me conheceu nesta vida. Já vive em várias épocas e agi de acordo com a maioria delas. Bom, antes de encontrar você, claro.

- Porque eu sempre te modifico. – sorri para ele, compreensiva.

Com você ao meu lado me tornei um dono muito bom, todos me adoravam. Bem, pelo menos naquele momento. Mas, isso já é uma outra história. O que importa é que fui conquistando sua confiança aos poucos, especialmente quando atendia aos seus pedidos. Como ajudar uma escrava grávida, presentear uma família de escravos com moradia, comprar amigos seus. Até arrisquei minha vida quando um dos senhores, que era muito apegado a uma escravinha, que você insistia em ajudar, não quis vendê-la e lá fui eu em um duelo.

- Você venceu?

- Elementar. – rimos.

Damen era maravilhoso com todos, um exemplo a ser seguido. Acho que sempre soube disso. Mas, como sempre eu me enganava, não assumindo tudo o que sentia. Naquela noite ele me contou mais uma de nossas vidas e de como os senhores de engenho ou sei lá como se chamavam passaram a desconfiar de todas a benevolências com os escravos, até descobrirem seu romance com a bela escrava Florência, eu. Agora digo bela, porque ele disse que me produzia com as melhores fazendas, era como chamavam os tecidos da época. Fiquei me imaginando com aqueles vestidos, chapéus, numa casa colonial aos arredores do Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa do Brasil. Sei de tudo isso porque fui logo pesquisar tudo sobre o país do samba, das mulatas bonitas. Achei graça nessa última característica exposta logo de cara num blogue, pois eu tinha sido uma dessas mulatas. Peguei-me diante do espelho tentando me vislumbrar negra, de seios fartos, cochas torneadas e cabelos crespos longos, do modo como Damen me descrevera. Devia ser mesmo bonita.

Caminhando pelo jardim de mil e uma flores e árvores, que Damen havia feito para meus passeios sob o luar, pensava em como tinha sorte. Uma sorte que a maioria não tem. Por isso, precisava fazer o melhor possível para ajudar muitos desfavorecidos e Damen me ajudaria nessa missão, tinha certeza. Foi neste instante que uma mulher tão linda quanto a aurora veio na minha direção, em passos suaves e coordenados. Possuía uma perfeição quase inumana. Cabelos vermelho-cobre e corpo escultural. Uma beleza de tirar o fôlego de qualquer um. Fico extasiada e perplexa por um instante, sem me mover. O livro que carrego vai ao chão.

- Olá, Florência. – diz, com uma voz aveludada e gentil.

- Olá. – gaguejo, desconfiada. – Quem é você? – olho ao redor, nada, mais ninguém. Ela sorri de canto.

- Você não tem sido nada boazinha, sabe disso não é?

- Quem é você? – dou passos vacilantes para atrás. – Vou chamar Romildo, nosso segurança.

- Ai, credo. Você conseguiu mais uma vez. Fez com que ele chamasse os capatazes de seguranças? Que horror!

- Você... já a vi em – ela me interrompe.

- Sim, você já me viu saindo do teatro. Ao qual não pode entrar e fica bisbilhotando os que podem. Me viu com Damen.

- Ele me disse que você não era ninguém, que não tinha importância. – fui invadida por um ciúme inexplicável.

- E não tenho. – ela se aproximou mais, num piscar de olhos, estava me segurando pelos ombros e tinha um olhar fulminante e disse lentamente. – Ainda.

Eu tentei me soltar, em vão. Ela era muito forte e suas unhas começavam a penetrar minha pele.

- Uma negra nessa época! Parece piada. Sofreu muito? – ela fez uma breve pausa. – Pois, vai sofrer muito mais. o que foi? O gato comeu sua língua? Ai, tadinha, é traumatizada... não consegue gritar em situações de perigo? Ai, dó.

A mulher parecia ler meus pensamentos e eu ficava cada vez mais apavorada.

- Vamos brincar? Sempre fazemos isso. Eu finjo que te deixo escapar e depois te pego e torturo. Que tal?

Comecei a me debater. As imagens das senhoras me torturando, por pensarem que eu era amante de seus maridos, me vinha a mente, junto com dos escravos e dos próprios senhores querendo me violentar, mas nunca conseguiam, sempre os espantava com minha suposta mediunidade, que surgira quando quase morri com cinco anos de idade no tronco.

- Nossa, eu sinto tanta pena de você. Foram quantas chibatadas até agora? Você contou? – ela sorria maternalmente, mas seus olhos irradiavam ódio. – Sabe, quando você pediu de presente este jardim eu vibrei, seria perfeito te encurralar aqui. Para de se debater! Se você quer tanto brincar... – ela aproximou seu rosto ainda mais do meu e sussurrou. – Acha que pode correr e chegar a salvo no casarão ou em qualquer outra parte antes que eu te alcance? Então corre!

Ela me largou, quase não sentia minhas pernas. Comecei a correr em direção a porta dos fundos, tropeçava sem parar e me ralei toda no caminho. A mais ou menos vinte metros da porta meu cabelo foi bruscamente puxado e senti seu hálito quente no meu pescoço.

- Tolinha. Já deixei você se divertir demais com Damen, a eternidade é minha.

Ela me arrastou para as árvores novamente. Segurei na mão dela que prendia meus cabelos. Ela me arremessou de encontro ao banco de mármore, bati a cabeça em uma das quinas e um líquido quente e viscoso escorreu pela minha fronte. Sacudi a cabeça, tomei fôlego e decidi que era hora de enfrentá-la. Corri em sua direção com todas as forças que consegui reunir. Joguei meu corpo contra o dela, fomos as duas ao chão, peguei meu livro, que se encontrava bem próximo, fechei os olhos e acertei sua cabeça. Pelo menos foi isso que pensei ter feito. Ela segurou o livro com uma das mãos e com a outra o meu pulso e me atirou longe. Ficamos em pé, uma de frente para a outra, como numa rinha. Ela mostrava seus dentes e eu a ataquei com golpes de capoeira. Fui bem sucedida no início, mesmo não tirando uma gota de sangue dela.

- Ai, você está tão divertida desta vez.

- Do que você está falando? – arfei.

- Ora, Flô, posso te chamar de Flô, não é mesmo?

- Não, só o Damen me chama de – interrompeu-me.

- Flor. Eu sei, eu sei. Que chatice essa vidinha de vocês.

- Vidinha? E o que você quis dizer com a eternidade é minha? Que coisa é você?

- Coisa? Se eu sou uma Coisa, como diz, ele também o é. Sim, querida, vidinha. Pois, ele é meu, sempre foi e sempre será.

- E cadê o seu contrato?

- Nós somos casados, meu bem.

Casados? Damen é casado? Não podia ser. Eu estava prestes a me entregar a um homem casado?

- Ai, que melodrama vagabundo esse seu, heim? – ela parou por um tempo. – Quer dizer que irá morrer mais uma vez virgem? – ria contido, com certeza para não chamar a atenção de ninguém. – Ui, você é tão esperta.

- Flor? É você? – a voz de Romildo.

- Cansei da brincadeira. Vou curtir as praias do Rio com o Damen. Até a próxima!

Sem que eu pudesse pensar, ela estava atrás de mim e quebrava meu pescoço com destreza, tudo ficou escuro e meu corpo inanimado deslizou pelo dela. Acordei sobressaltada no meu quarto, com Damen ao meu lado. Minha respiração era realizada com difuculdade e a pele coberta de suor. Não dormi o resto da noite. Ainda sentia o perfume dela no ar e o eco das suas últimas palavras em meu ouvido. A dor da morte estava em mim.


4 comentários:

Vitor disse...

Oiiii

Parabéns pelo blog e seus contos estão muito bons messssmoooo.

Gostei de tudo.

Gisele Galindo ou simplesmente Gi. disse...

Poxa, Vitor, obrigada!
Fico mt feliz.
;) bjs***

Vitor disse...

Gostei muito do segundo conto viu de vdd, amo historias romanticas.

BJooS

Gisele Galindo ou simplesmente Gi. disse...

Vlw, Vitor!
Tb amo histórias românticas. Na minha opinião, tds histórias deveriam ter uma pitadinha, nem q fosse de leve, de romance, rs. É bem mais interessante.
;) bjs***