domingo, 26 de setembro de 2010

CRIANÇAS DO PENSAR (cotidiano)

De vez em quando dedilhava sua música favorita. Há muito não sentia as teclas sob seus frágeis e encardidos dedos. O que mais sentia era a falta dos entes queridos. Mas, quais? Já não lembrava. A memória tinha cedido lugar ao esquecimento e aberto a vala dos enganos. Estes vinham envoltos a carícias e seduções da mente brincalhona. Na maior parte do tempo sabia que se tratava de ilusões. Mas, de repente se via enganado e perdido, acreditando nas imagens que se materializavam a sua volta. Cada detalhe lhe era percebido e julgado como verdadeiro.
Numa hora agia como um magnata de Wall Street, nem fazia idéia do que era isso, porém havia toda uma lógica no momento. Em outra, encarnava uma madame da elite, podia ser do século atual, como também, servia de séculos atrás, na Europa de preferência. Em alguns dias era uma cigana sorridente e sensitiva. Conseguia uns trocados no centro da praça da cidade, tanto fazia se por causa de suas previsões corretas ou por pena de seus pés descalços. Às vezes até latidos escapavam-lhe, quando se sentia feito cão vira-lata em busca de um pão sujo que calasse seu estômago de ontem. Brincava nos parques que se montavam do nada. De repente lá estava ele, com cinco anos, na caixa de areia, com seus caminhõezinhos, ou entre as bolinhas coloridas. Jogava-se sem parar para o alto, numa alegria só. Ah, como era feliz nas crianças do seu pensar!
Vários nomes o rondavam: Bartolomeu, Silvia, Elisabeth - a rainha, claro -, Hugo Vinícius - possuía um leve sotaque castelhano, pelo menos assim o imaginava -, Glauco, Rômulo, Sansão e Judas. Este último não podia faltar, pois se punha invariavelmente assim. Como se tivesse jogado pedra na cruz, martelado até o além fim e deveria cumprir sua pena por isso.
O clima da cidade não fazia sentido. Um sol de lascar nascia na intenção de arranhar sua pele e anoitecia uma geleira pronta para arrancar-lhe a carne desprotegida sob o toldo de um bar qualquer. Depois chovia sem parar, encharcando sua única manta, deixada por um carro ligeiro, que não voltou para apanhá-la. Encarou aquilo como uma doação, agradeceu às marcas no asfalto, que ainda resguardavam as risadas e o vapor da quentura humana vindas do veículo. Do mesmo modo que vieram, as gotas se foram, evaporaram e deram assento a cálida lua. O inverno ou o verão faziam morada no mistério da vida.
Conseguia ler nos olhos dos passageiros de suas horas a desconfiança, o desgosto - de suas próprias histórias ou da figura que jazia ali, ainda respirando -, a dó e raramente a gentileza com o próximo.
Os dias se repetiam numa jornada incansável. Seu corpo incrustado de músicas melancólicas, que lhe sussurravam a cruel realidade e o protegiam da mesma, gritava por algo que jamais chegaria aos ouvidos alheios de compaixão. Enquanto seus ouvidos ardiam de horas inexatas de sua existência desnecessária.
De vez em quando uma imagem difusa, uma silhueta, um alguém de outrora, que partira dele ou tinha sido o contrário? O fato é que faltara algo... Fora para um vácuo longínquo e sem um adeus.
Então, dedilhava. Dedilhava para sonhar. Uma melodia nostálgica. Para ser outro ele. Para rever Cissa. Ah, Cissa! Como lhe fazia falta nos segundos de lucidez! Os quais nunca o permitiam chegar ao lugar do socorro, ao cais onde seria curado. As ruas apenas voltavam. Nada de idas. Sempre voltas. Sempre um passo atrás. Cissa... Seu toque de aurora. Seus cabelos de primaveras. Suas miradas enfeitadas de atrevimento e carícias. Seus sentimentos brancos, de cores rotas.
No entanto, nada disso doía-lhe mais. As crianças estavam ali, brincalhonas, travessas nas suas loucuras. Ele tinha muito para dar ao mundo. Sonhos de esquinas, de valas e sarjetas. Toda vez uma surpresa para alegrar ou assustar. Lá estavam elas de novo. As crianças do seu pensar.


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